Um Dia Com o Cérebro de Outra Pessoa

Manhã de sábado, ele acorda confuso, o relógio em cima do criado mudo marca 9:00 h. Ele pensa – Putaqueupariu, tô atrasado! Lembra que é sábado, se acalma, senta da cama e olha ao redor. Pensa que talvez tenha chegado a hora de parar de fazer tanto as coisas que ele precisa fazer para fazer as que ele de fato quer fazer. Precisa escapar das garras deste aparente indriblável sistema de incentivos e coações que lhe transformaram em um robô idiota que acorda, faz traslado até o trabalho, trabalha, faz traslado para a universidade, estuda, faz traslado para casa, dorme, acorda e repete tudo.

Até que chega ao sábado e seu cérebro já não consegue compreender que pode desligar (se é que ele anda ligado nesses dias). Por enquanto. Olha sua estante de livros, lá está um exemplar de Viagem ao Fim da Noite, de Cèline. Havia comprado este livro por recomendação de um vendedor de livros na ocasião do lançamento de uma tese de doutorado de uma amiga sua numa dessas livrarias badaladas meio cult meio decadente de São Paulo.

O livro é bom, muito bom inclusive, tanto que ele resolve ir atrás da história do tal do Cèline. Porco fascista, racista e anti-semita. Sentiu vergonha quando soube que lera algo saído de um idiota preconceituoso e o pior. Gostara do livro. Ele pensa: Como separar o autor da obra? Será possível? Se bem que eu sigo ouvindo Michael Jackson mesmo sabendo de sua preferência sexual por crianças. Está certo isso? Não seria parecido com trepar com uma puta? Você nem liga se ela faz isso por necessidade ou por prazer. Simplesmente põe a coisa lá dentro e fode até gozar. Você só quer uma parte da coisa toda. Ou talvez uma coisa não tenha nada a ver com a outra. Resolve que deve estar enlouquecendo e para de pensar.

Levanta, escova o dente, pega sua mochila e vai pra aula de inglês. No caminho pensa, será que eu não estou contrariando o que eu havia decidido? Fazer mais o que eu quero e menos o que eu preciso? Eu Tenho mesmo que ir ao inglês? Eu nem gosto dessa merda. Serei forçado a repetir seiscentas vezes aquelas sentenças ridículas do verbo to be? Continua andando. Chega à sala de aula e olha os rostos felizes dos alunos por ali. Todos orgulhosos de serem parte de alguma coisa, mas, que porra de coisa nós faríamos pela humanidade, além do que já vem sendo feito? Nada.

Pensa que se todos naquela sala refletissem por mais de um minuto sobre a lógica disso tudo, estariam chorando ou a sala estaria vazia. Caso pensassem que o mundo segue, a muito tempo, uma tendência de auto destruição da qual as novas gerações aprendem todas as lições de egoísmo e luta pelo status, talvez dessem um passo na direção contrário ou dariam muito lucro às empresas do ramo farmacêutico de calmantes e, nesse sentido, fariam girar mais ainda a roda da economia. Ao invés disso, a aula começa e os rostos felizes seguem respondendo às questões da professora. Talvez fosse por isso que ele estivesse ali.

A professora! Ela o olhava com aquele olhar. Aquele, você sabe qual é! Isso era sua motivação. Não o domínio do idioma, não a prova de proficiência do mestrado, não a abertura das portas do mercado de trabalho, não a cara de intelectual ao pronunciar corretamente uma palavra difícil, não a compreensão dos enlatados americanos sem legenda, não a leitura do New York Times na internet. Era ela. Ela o movia. De repente, a professora, não tão discretamente, coça a bunda com um lápis e puxa o catarro do nariz com força. Não. Não era ela que o trazia às aulas. Talvez fosse seu cérebro.

Ah…é isso, esse cérebro não é meu, ele pensa. Só pode ser isso, quem colocou esse cérebro na minha cabeça? Ela para de novo e pensa: realmente, eu estou enlouquecendo. Levanta, sai da sala e volta pra casa. Abre a geladeira, toma a metade que restava na garrafa de vinho barato, dorme no sofá. Quando acorda tudo parece fazer sentido de novo. Talvez tenham devolvido meu cérebro enquanto eu dormia. Oxalá! Mas ué, pensa, se era o cérebro de outro, como eu me lembraria? Como eu conseguiria refletir enquanto EU, se o cérebro não era meu? Ai caralho, parece uma crônica esdrúxula da lenda do cavalheiro sem cabeça do Irving. Esse negócio de cabeça é realmente estranho né? Ouvi dizer que tem uns caras que congelam o cérebro dos ricassos para descongelar no futuro onde a tecnologia estará mais avançada, a ponto de trazê-los de volta à vida. Vai gostar da vida assim lá em casa viu!

3 comentários sobre “Um Dia Com o Cérebro de Outra Pessoa

  1. Rindo do cavaleiro sem cabeça!!!rsrs
    Me identifiquei muito. Faço trocentas e noventa e nove coisas q detesto pra poder fazer duas ou três que me dão prazer.
    Esse é o cérebro que cismam em encaixar em mim o tempo todo.

  2. “Todos orgulhosos de serem parte de alguma coisa, mas, que p… de coisa nós faríamos pela humanidade, além do que já vem sendo feito? Nada.” The Best part!!

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