Bem-te-vi

Vai amanhecendo o dia na cidade de São Paulo. Você que acabou de desenhar na sua mente aquele imagem do sol subindo por trás da cortina de neblina e a manhã clareando, pode desfazer esta ilusão. Aqui é o som dos automóveis  que anuncia o despertar de uma nova manhã. Vez por outra, ouve-se um Bem-te-vi cantando ao longe.

Antes do dia acender, acendem-se as luzes dos prédios duros, ouve-se o som dos despertadores, a cortina de fumaça vem dos automóveis, tanques da guerra urbana de São Paulo, imponentes e enfileirados. São luzes brancas vindo e luzes vermelhas indo, até onde a vista alcança. Buzinas, sirenes, freadas, gritos e uma profusão de sons que inundam o cérebro da gente.

Aos poucos vamos nos tornando parte da cidade, desta lógica urbana que nos assimila e da qual nos gabamos de participar. As conversas se tornam mais tensas, sem conteúdo, palavras vazias, cheias de aparência e inverdades.

Às vezes somos surpreendidos por um ato que não se coaduna com a cidade: alguém dando comida para um mendigo, alguém andando devagar no meio da multidão, pessoas conversando em uma praça, alguém para para colher amoras num pé. Mas logo nossa atenção se volta para nós mesmos. Não se pode dar ao luxo de viver para os outros. Estamos na cidade.

A regra é comprar. Consuma, adquira, a promoção é passageira, aproveite. Cartazes nos lembram o tempo todo de que o dinheiro é a meta e as pessoas são concorrentes.

“Adquira Logo o Seu”, “Seja o Primeiro a Possuir”, “Reserve Sua Vaga”, “Compre”, “Parcele”, “Garanta Seu Lugar no Mercado de Trabalho”.

Estão em todos os lugares. No Metrô, nos faróis, nas avenidas, na televisão, no rádio, nas roupas e onde fundamentalmente interessa: Nas nossas mentes e concepções de felicidade.

Agora podemos seguir em frente, com nossos tênis novos, com nossos iPod´s, com nossos carros e cartões de crédito. Somos invencíveis. Coitados dos homens do sertão, apegados aos ditames da natureza, aos ciclos das águas, ao canto do galo. Nós, cidadãos urbanos, não nos vergamos a isso. Nossos aparelhos de ar-condicionado nos ditam o clima. Nossos chuveiros nos molham de certezas climáticas e nossos despertadores nos levam para o trabalho onde poderemos gerar riqueza e girar a grande roda da fortuna.

O Bem-te-vi segue cantando entre as árvores acinzentadas pela fumaça. Talvez tentando nos tirar do transe urbano, mas o conforto é mais forte e nos seduz. O canto fica cada vez mais distante. Bem-te-vi, Bem-te-vi, Bem-te-vi.

2 comentários sobre “Bem-te-vi

  1. Acho admirável detectar e verticalizar o olhar, os estudos, sobre nossa sociedade.
    Parabéns pela percepção e compreensão.
    Bem te vi à sociedade!

Deixe um comentário