Por toda a vida ou quase.

 

Ela usava um perfume agridoce e seus olhos eram magnificamente pretos, daria uma ótima amante, senti a maciez de sua pele negra quando tirei suas luvas, ela desmaiada ainda parecia uma escultura, o que deveria ser uma cena de crime, aos poucos foi se tornando algo diferente. Quem nesse mundo seria capaz de prender uma mulher daquelas? Quem?

Pensei em colocá-la na cama e possuir seu corpo ainda desvanecido de toda força, tirar sua roupa e fazer com ela ali mesmo, seus olhos estavam abertos, será que a matei? Pensei, será?

Posso imaginar aquele corpo deslizando sorrateiro pela janela, abrindo minhas gavetas, fuçando nas minhas coisas. A vadia deve me ter seguido durante alguns dias até que decorou minha rotina e bolou o golpe. Seu único erro foi acreditar que eu dormia de noite.

Morreu? Não sabia que era uma mulher, não consegui distinguir no escuro. Não, a pancada havia sido de leve, com certeza estava desmaiada, desmaiada e linda, Não posso esquecer, ela é uma ladra, uma ladra, levaria minha carteira na primeira chance que tivesse, me faria gozar e levaria minha carteira enquanto eu dormia. Se bem que, olhando aquele corpo, valeria a pena! Ela começa a se mexer.

Acordou!

Me olhou ainda desnorteada, não sabe onde está, fiz o nó com bastante força, mas não o suficiente para machucá-la.

Ela me olha e começa a entender, seu olhar me fuzila, ela está amarrada à cama, imobilizada, inválida e derrotada, mas ainda assim; eu sou seu refém.

Mantenho o olhar de dominador, como o Rei que, mesmo derrotado, não perde a majestade.

Mas fico sem ação, não consigo atrelar sua imagem à de uma bandida, meus instintos me traem, me dominam e sou refém do seu olhar.

Não consigo parar de pensar em fuder com ela ali, afina de contas, ela ia me roubar. Vagabunda!

Ela merece!

Olho para ela e desisto, minha racionalidade me impede de usar a força apesar de ter a justificativa perfeita para concretizar o abuso, ela queria me roubar e além do mais, ela jamais me denunciaria!

Tão irresistível quanto à democracia na América para Aléxis de Tocqueville, tão iminente quanto o espectro do comunismo de Marx e Engels, tão contagiante quanto o Ebola, sua presença me desconstrói, seu cheiro excita todas as células do meu corpo e se aloja na minha memória olfativa. Lembrarei deste cheiro como lembro do cheiro da terra molhada do quintal de minha casa, ainda na infância, quando jogava bola de gude.

Seu olhar me domina, tenho que soltá-la, preciso soltá-la.

Ela grita comigo, me xinga, me ofende, mas, meu pensamento ignora suas palavras. Só consigo me imaginar ali, em cima daquele corpo, olhando no fundo daqueles olhos rasgados nas pontas e arredondados no meio, puxando seus cabelos e beijando aquela boca carnuda.

Não resisto, solto a bandida.

Devo estar louco!

Ela pode estar com mais alguma arma, pode facilmente me matar, roubar meu cofre como fez com meu juízo.

Solto-a assim mesmo.

Ela dá um tapa na minha cara e corre em direção à porta, vou atrás dela, a puxo pelo braço, ela tenta me esbufetear novamente, seguro o outro braço, estamos frente a frente, eu segurando seus braços com força, ela me olha, me encara, não vejo medo em seu olhar, beijo-a, beijo-a longa e lentamente, diminuo a pressão sobre seus braços e ela me abraça na altura do pescoço.

Sou louco!

Com certeza!

Ela tenta me roubar e eu me apaixono por ela.

Nossos beijos nos guiam de volta para a cama, dispo-me, seguro seu cabelo e olho nos seus olhos.

Temos que fazer, não há volta, é chegado o momento, tudo faz sentido agora, penso no meu último livro, penso que ela mereceria um capítulo, talvez um livro todo. Talvez uma vida toda.

Suor, saliva, atrito, fúria, luxúria e aquele cheiro. Invadindo minhas narinas e tocando o fundo da minha alma até se instalar no meu inconsciente assim como as pedrinhas que jogamos nos lagos.

Fazemos.

Nietzsche estava certo, as palavras nunca conseguirão explicar aquele momento.

Acordo e ouço o rádio da cozinha ligado.

Ela deve estar preparando o café da manhã. Penso.

Levanto, calço os chinelos, ainda sinto seu cheiro no ar. Chego à cozinha, o rádio toca Tchaikovsky, reconheço, é a abertura 1812, linda, num crescendo.

Ela não está, volto para o quarto, olho na cômoda, minha carteira está aberta, corro para a sala, a estante está deslocada e o cofre arrombado. Levou meu exemplar de O Príncipe.

Ela conseguiu.

Levou o que queria.

Eu também.

O rádio segue tocando Tchaikovsky, e eu ainda tenho uma garrafa de vinho e posso sentir seu cheiro no ar.

Alexandre Fonseca

São Paulo

Inverno de 2008

 

 

 

 

 

 

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