O Carro Amarelo

Marlon tinha um carro amarelo de que gostava muito. Mas esse era apenas um dos carros que ele possuía. Havia também dado um Porshe para o seu filho logo que o rapaz passou no vestibular.
Vivia numa casa grande em um bairro de luxo nos jardins. Na esquina havia uma grande e iluminada padaria onde uma das empregadas comprava o desjejum da família. O bairro era tranqüilo e bastante policiado, mas, apesar disso Marlon mantinha cercas elétricas, cães e um quarto do pânico dentro da casa para o caso de bandidos invadirem o lugar.
Ele saia para trabalhar todas as manhãs com seu carro amarelo e era invejado em todos os faróis. Na empresa não era diferente, todos gostavam do carro de Marlon e o tratavam bem pelo fato de ele ser o dono, mas também porque era um bom patrão. Pagava o salário na média do mercado e em dia, todos os meses. Décimo terceiro, férias, abono salarial e tudo o mais.
Ele transitava entre as mesas da empresa de imóveis com seu terno alinhado e sua gravata italiana, observando os funcionários. De vez em quando soltava um “muito bom Paulo” ou um “você está bonita hoje hein Carmen“ e o dia se arrastava até o fim, Marlon ia para casa no seu carro amarelo e sabia que lá estaria sua esposa lhe esperando. Ela havia feito uma operação para ampliar os seios e sempre usava decotes fundos, sem sutiã. Os bicos dos seios dela se ouriçavam e eles faziam amor depois do jantar.
– E então querida, como foi o seu dia? – Marlon perguntava.
– Normal, fui à academia, passei na clínica para ver como as coisas andam por lá, comprei um vinho e voltei para casa. – Respondia sua esposa. – Precisamos organizar a nossa viagem, quero voltar à Paris este ano. – Continuava.
– Já disse que prefiro os Estados Unidos, quero comprar algumas coisas que vi num catálogo.
– Ah Bem, Paris é tão mais romântica que Nova Iorque, tenho saudades da comida de lá, dos vinhos, da boa música…
A conversa seguia até que ambos pegassem no sono e pela manhã as rotinas continuavam normais.
As duas únicas coisas que deixavam Marlon triste eram um ponto de ônibus que havia no muro lateral da casa dele, onde se amontoavam as babás, as empregadas, os porteiros, os ajudantes de serviços gerais e toda sorte de funcionários dos lares que ladeavam sua residência e um mendigo, que passava por ali arrastando um carrinho acompanhado de um cachorro branco com manchas pretas pelo corpo. Ele passava cantando sambas antigos com o carrinho feito do que um dia fora uma geladeira bege Eletrolux do qual pendia um violão verde, desgastado pelas várias chuvas e sóis pelos quais havia passado.
Aquela imagem não se coadunava com o entorno, era feio, estranho, aquele amontoado de barba e cabelo meio grisalho, ensebado, fedendo a pinga e violência. Já o vira brigando pela rua com outros mendigos por caixas de papelão e achava tudo aquilo uma coisa horrível e agora ali estava ele, arrastando seu carrinho como um caramujo, impedindo a saída do seu carro amarelo. Onde estavam as entidades sanitaristas? A polícia não podia fazer nada?
Essas coisas o faziam lembrar que essas pessoas existiam. Na maioria das vezes ele não se lembrava delas. Os tacos de golfe apareciam de algum lugar que ele desconhecia, os mousses de chocolate surgiam na mesa da sala de estar, os dejetos dos cachorros sumiam como num passe de mágica e para isso bastava que alguns míseros salários fossem pagos. Em troca disso as pessoas ainda sorriam e agradeciam cordialmente: “bom dia senhor Marlon”, “o senhor está bonito hoje”. Mas a liberdade de ir e vir estava do lado do mendigo que seguia pela rua cantando algum samba de tempos remotos.
– Bom, mas o que se há de fazer? – Dizia ele à esposa. E seguia para o clube de golfe.
O fim de semana chegava e ele combinava uma ida ao shopping com a esposa, um jantar com amigos, um encontro entre as famílias ou alguma nova peça de teatro estreando na cidade.
Certo dia Marlon acorda no meio da noite com um dor de cabeça dos infernos. Levanta, vai até o banheiro, pega um comprimido, caminha até a geladeira da cozinha, pega uma jarra com água e desmaia.
Sua esposa acorda assustada com o som do vidro contra o piso de cerâmica. Corre até a cozinha e encontra o corpo do marido estendido no chão. Volta, pega o telefone e liga para o médico da família.
Marlon acorda numa sala de hospital, uma sala com uma grande janela de vidro de onde se pode ver a movimentada avenida que se estende de lado a lado da janela. Ele vê que há tubos saindo do seu nariz, há adesivos pelo corpo e alguma coisa faz um som pontual e repetitivo. Pi…..pi…..pi…..pi.

Ele volta a dormir. Parece estar sonhando quando ouve, meio  distante, a voz de sua esposa e outra de um estranho, provavelmente o médico.
– Ele ficará bem, mas não sabemos ainda se voltará a andar. – Dizia a voz masculina.
– Ele sempre foi tão saudável, o que será que houve?
– Há casos que a medicina ainda não explica…
O hospital é limpo, muito limpo. Tudo parece ter acabado de sair de uma caixa com aquele isopor em farelo.
Tudo é branco, muito branco e iluminado e a enfermeira passa e pergunta:
– Se sente melhor nesta manhã?
– Posso trocar seu papagaio?
– Está com fome?

Os dias se transformam em semanas, meses e logo ele percebe que já está internado faz um ano. Os médicos não descobrem o que há com ele, o quadro piora, tubos e tubos são enfiados e retirados dele, as visitas diminuem e ele ouve a esposa reclamar das altas faturas do hospital caindo no banco. Tudo o que ele recebe no aniversário é a visita de alguns amigos e familiares. Eles trazem flores, Marlon já não fala mais e fica observando a imensa janela do hospital no alto do seu 12° andar.
Conta os carros na rua, começa inclusive a distinguir alguns que sempre passam por ali. Ouve o trânsito, ouve os médicos no corredor, sabe que morrerá. Sente a morte se aproximando a cada dia, passo a passo, sente as garras da morte tocando seu ombro.
Está enlouquecendo, treme, começa a decorar o nome das doenças que os médicos falam pelos corredores: Hepatite, Caxumba, Rubéola, AIDS, Câncer, Poliomilielite, Anseníase…
Os repete mentalmente nas raras vezes em que sua esposa vai lhe visitar. Olha para aqueles seios enormes e pensa: Hepatite, Caxumba, Rubéola…
Os dias são uma tortura e em uma manhã é exatamente igual a outra, exceto naquele dia.
O trânsito está pior do que de costume, ele consegue ver a longa fila de carros que buzinam freneticamente. Há ambulâncias, carros, caminhões, motocicletas e o trânsito infernal. No canto da janela ele percebe o motivo do trânsito. É o mendigo!
O maldito se arrasta pela avenida causando o maior trânsito para o período em dois anos, alheio ao caos que gerava. Havia pintado o carrinho de amarelo. Marlon tateia ao lado da cama, procurando o botão. Finalmente consegue, a enfermeira chega, ele balança a cabeça apontando para a janela, quer que ela feche as persianas. Ela obedece, puxa a corda no canto da janela e a sala fica escura novamente. Ela sai e os pensamentos atordoam a mente do velho Marlon que ainda consegue ouvir, mesmo entre as sirenes, freadas e buzinas, a voz do mendigo:
Aaaaa sooooorrir, eu pretendo levaaaaar a viiiiiiiiida…

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4 comentários sobre “O Carro Amarelo

  1. A simplicidade da vida… Eu conheço um ditadinho que diz: “A vida se faz feliz nas pequenas coisas”… Me emocionei… bonito conto!!!

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